Esquina da Vergonha: A psique social diante do espetáculo da violência

Eis aqui uma análise psíquica de uma sociedade adoecida e acima de tudo, é um aviso

Marcelo Lopes: Palavra substituída pela pancada é barbárie. (Foto: Divulgação)


ARTIGO | Comendador Marcelo Lopes é empresário e presidente do Rotary Club de Trindade

Foi em Trindade, terra de romaria, mas a cena não tinha altar. Era rua. Asfalto quente. Uma mulher sendo espancada por um servidor público — um agente de trânsito — à luz do dia. E todos ao redor: alguns filmando, outros paralisados. O público interveio, sim. Mas demorou.

E no intervalo entre a primeira agressão e o primeiro braço que tentou conter, instaurou-se aquilo que, no campo da psicanálise, chamamos de colapso do simbólico. O momento em que a linguagem falha, o tempo paralisa, e o instinto explode.

Na superfície, a briga de dois adultos. No fundo, o colapso de um pacto social. Uma mulher que se recusou a abaixar a cabeça. Um homem treinado para lidar com o público, que escolheu a força. E um público que hesitou — que só agiu depois.

Essa demora diz muito. Revela o desconcerto coletivo diante da violência. A dúvida entre o medo e a responsabilidade. O choque que paralisa, como se a realidade precisasse de segundos a mais para ser digerida. Mas o corpo da mulher apanhava enquanto a consciência da multidão se formava.

A mulher, ainda que verbalmente provocativa, não representava ameaça física real. Era a imagem do incômodo. A fala insistente que o homem queria calar — não com argumentos, mas com os punhos.

O agente, ao levantar a mão, não só rompeu com sua função pública. Rompeu com o princípio civilizatório que distingue autoridade de autoritarismo. Seu uniforme, que deveria representar serviço, tornou-se símbolo de brutalidade. E o Estado, mais uma vez, assistiu.

E mais do que isso: o Estado já sabia quem ele era. O agente — agora autor da agressão pública — já responde a um processo por violência doméstica desde 2022. É reincidente. Não só no ato — mas na permissividade do sistema que nada fez. Mais uma vez, o Estado tardou. Mais uma vez, falhou.

Quem demora a agir diante da barbárie, contribui para que ela aconteça. Não há neutralidade na cena da violência. Há hesitação. Há medo. Há impotência, e há consequências.

O Código Penal Brasileiro é claro: Art. 129 – Lesão corporal. “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem.” Pena: 3 meses a 1 ano de detenção.

Se o agressor é servidor público e age violando seu dever funcional, aplica-se a agravante prevista no Art. 61, II, “f” do Código Penal. Também pode ser enquadrado na Lei 13.869/2019 – Abuso de autoridade, com penas de até 4 anos de detenção e perda do cargo. E como a agressão foi pública, registrada por vídeos e testemunhas, trata-se de flagrante delito (Art. 302 do Código de Processo Penal).

E a lei é inequívoca: Art. 301 – “As autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem for encontrado em flagrante delito.”

O Estado falhou duas vezes:

1. Ao permitir que um sujeito emocionalmente despreparado vestisse o uniforme, mesmo após já responder por violência contra mulher.

2. Ao não prendê-lo em flagrante, mesmo com prova pública, as imagens e a indignação de uma cidade inteira.

E é exatamente isso que a população espera: uma resposta à altura da brutalidade cometida. Não bastam afastamentos administrativos ou notas oficiais vazias — a prisão em flagrante era o mínimo esperado, conforme prevê a lei. Quando o agressor sabe que não será contido, ele agride de novo. Mas quando o Estado prende, quando a justiça age com firmeza e visibilidade, o próximo agressor pensa duas vezes. A prisão em flagrante intimida, inibe, sinaliza que a civilização ainda existe.

Esta não é uma crônica. É uma análise psíquica de uma sociedade adoecida. E acima de tudo — é um aviso. Se continuarmos a tratar violência contra a mulher como erro administrativo, em vez de crime, continuaremos a enterrar nossas filhas, mães, amigas — na vala comum da omissão. E que fique claro: a barbárie começa quando a palavra é substituída pela pancada. E o silêncio — ou a demora em agir — é a segunda agressão.


Nota: Artigos assinam publicados nestes espaço trazem ideias e opiniões de quem assinam e não do titular deste blog.


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