As mudanças climáticas e a tragédia de Muçum, Rio Grande do Sul

O planejamento urbano e regional deve ser observado com o zelo e urgência que o tema requer.

Antônio Pasqualetto,  professor. (Foto: Reprodução)


ARTIGO | Prof. Dr. Antônio Pasqualetto é Engenheiro Agrônomo, Pós-Doc em Environmental Enginnering e Professor da PUC Goiás e IFG. Filho de Muçum, RS


Muçum é o nome de um peixe, muito comum na região e de agradável sabor culinário. Nome dado a um povoado pequeno da região centro-norte do Rio Grande do Sul (RS). Pode ser lido da esquerda para a direita e da direita para esquerda. “Ninguém segura Muçum” já foi slogan sinônimo de crescimento, fazendo analogia com o peixe liso de segurar nas mãos. O cantor Gaúcho da fronteira usou o nome do município para contar de um casamento e o divulgou ao Brasil. Eu não imaginava que esta terra querida seria novamente conhecida por uma tragédia.

Sinto-me comovido pelos acontecimentos da maior enchente registrada em Muçum, RS. A lembrança da cidade, sem desconsiderar todas as demais que sofreram com as inundações no Rio Grande do Sul, não é mero acaso, sou filho dela e vivi minha infância pisando naquele chão, agora virado em lama. Lá deixei minhas marcas e lembranças nas escolas Castelo Branco e Souza Doca. Na vila São José, conhecida como vila tripa, pois em seu final havia um matadouro de animais, próximo ao rio Taquari, fui criado por meus pais e aprendi os ensinamentos da vida.

As lágrimas que solto, são pelos desabrigados, 85% da cidade, desaparecidos, mais de 200, pelos mortos, mais de 15, até o momento, e pelos familiares que lá tenho, inclusive minha mãe com 92 anos, que do alto de sua vida centenária, nunca havia presenciado tamanha catástrofe. Aliás, lembro-me de minha vó paterna, Dona Maria Gobbi Pasqualetto, ao completar 100 anos e presenciar uma enchente do Rio Taquari, em Encantado, RS, me disse em italiano. “Ho paura di morire, perché più vivi, più impari”, ou seja, “dá medo de morrer, porque quanto mais se vive, mais se aprende”.

Dor maior é ver a partida de vizinhos, amigos afogados não apenas pela água do rio, mas também pela incapacidade do sistema político brasileiro de dar segurança a seu povo, dignidade aos idosos e proteção aos necessitados. Dói saber que a aposentada Elisabete Simonaio, 65 anos, agarrou-se a um sofá, boiando na água de seu quarto, segurando a mão de sua mãe, morta, para que pudesse lhe dar um enterro digno, disputando sua vida com as correntezas lamacentas do rio Taquari.

Animais pendurados nos fios da rede elétrica, pessoas desesperadas na escuridão da noite, sem luz para guiá-las à liberdade, com sede de vida e com o grito do silêncio entalado em suas gargantas, lhes restava a angústia de decidir por sua sobrevivência, sendo conduzidas a parte alta da cidade, onde há a Igreja e o hospital estão localizados. Pedindo piedade a Deus e misericórdia, para que Jesus pudesse interceder, da mesma forma que Moisés ergueu as mãos para o mar Vermelho e separou as águas com um forte vento de leste para permitir a fuga do povo hebreu do Egipto para a Palestina. Quando a água dobra de volume, quadriplica a capacidade de arraste e consequentemente, da destruição e foi isto que aconteceu em Muçum, RS, o despejo de 20 milhões de litros de água por segundo.

A esperança sempre esteve presente nos que lá vivem, imigrantes e descendentes de italiano, trazem no sangue a coragem de ter atravesso o oceano Atlântico. Acostumados com as cheias do Rio Taquari, que frequentemente visitava nossos lares. Na antiga casa do meu pai, um dia as águas chegaram até a garagem e não pediram licença. Ao observá-las, refleti sobre do poema "NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI"

Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

E foi assim, devagar e sempre, o rio de aproximou cada vez mais, já não estávamos mais protegidos. No início, não nos amedrontava, depois, invadiu nossas casas e nos despejou, nos mandou embora, alguns o rio levou consigo. Aos que ficaram, restou a barbárie, a lama, o caos, a desordem, a falta de energia, água e internet. Nos tornamos frágeis diante da correnteza das águas e já não podemos dizer nada. O silêncio dos mortos e a ausência de comunicação foram fatais para que nosso espírito se sentisse apunhalado.

Cresci, sai para o mundo, mas meu coração sempre esteve ligado ao povo Gaúcho, mesmo tendo três filhos Goianos e escolhido a maravilhosa cidade de Goiânia para vier. Sinto-me um Goiúcho. Enquanto Muçum, RS tem altitude média de 75m, Goiânia possui 750m. A altitude de 75 m do nível do mar não foi suficiente para segurar a força das águas. O rio foi nos avisando, e depois de nos visitar, adentrou em nossa casa e a possuiu.

Meu irmão, Onório, 72 anos, um trabalhador como todo Brasileiro, após aposentado, preocupado com os filhos e a família, resolveu assumir um financiamento do programa Minha Casa, Minha Vida e ergueu um novo imóvel de dois pisos, achando que Rio o deixaria em paz na velhice. Triste ilusão, seu esforço de carregar os móveis ao segundo piso foi em vão. O rio deixou sua digital até o teto. Perdeu tudo! Menos a fé, que lhe é peculiar! 12 anos pagando o imóvel e mais 17 anos de prestações lhe colocaram num dilema. Talvez a morte chegue antes que a quitação do imóvel, a não ser que haja sensibilidade do governo em extinguir as parcelas restantes.

Seu relato expressa o esforço em trocar o telhado de amianto por zinco após a chuva de granizo fazer dele uma peneira. Isto ocorreu no dia 22/08/2023, com pedras de mais de 3 cm de diâmetro, deixando a cidade em alerta e mais de 1000 casas danificadas. Findou a troca do telhado e o Rio veio visitá-lo entre 04 e 06/09/2023. Por sorte, os meus estão vivos, já que se deslocaram para região mais alta da cidade e houve acolhimento de outra imã, Idite, que já sentiu a tristeza de outras enchentes. Em 2021 o rio Taquari havia subido 22,7m, já era muito, mas a história ficou para trás, e todas as anotações das enchentes anteriores, que meu irmão guardava em um caderno, foram embora com a nova marca recorde de aproximadamente 27m, bem superior ao recorde anterior.

Como profissional da área de meio ambiente, tento buscar explicação nas mudanças climáticas, o aquecimento global, os quais potencializaram a frequência e a intensidade das chuvas. O fenômeno El Niño em 2023 é um sintoma claro. Os limites planetários estão excedidos. A capacidade de suporte do planeta se esgotou. Os cientistas já estão céticos em manter a temperatura em até +1,5 graus celsius, em relação aos níveis pré-industriais. Já se especula superar os 2 graus.

Não bastasse tudo isto, a interferência do ser humano no regime hídrico também ocorre com construções de barramentos e não diferente, nos afluentes do Taquari, dentre estes, o Rio da Antas e outros. Neles, barragens que desafiam a natureza, calculadas para dar certo, estão sob a constante missão de evitar rompimento, liberando águas e potencializando a subida rápida do rio. É de se estranhar que o nível a água tenha subido mais de 2m em menos de uma hora em Muçum, RS. E as matas ciliares, onde estão? A impermeabilização do solo? de quem é a responsabilidade? Uma grande lição fica, que sempre haverá um evento da natureza que superará as estimativas da Engenharia.

Quando o exército construiu a Ferrovia do Trigo, pensou ter colocado a ponte Rodoferroviária Brochado da Rocha a uma altura segura. Quantas vezes a atravessei e contemplei o pôr do sol ao entardecer, vendo a silhueta do rio, ela já não mais existe, restaram os pilares e a passagem do trem, bem mais acima. O município, conhecido como Princesa da Pontes, tem o privilégio de ser recheado de inúmeros túneis e pontes, os quais compõem a ferrovia do trigo, dentre elas, está a segunda maior em altura da américa latina, com 143 m de altura e 509 m de comprimento, que passou a pertencer ao recém-criado município de Vespasiano Correa.

Muçum já chegou a ser maior, quando da construção da ferrovia, beirou 7000 habitantes, mas o censo do IBGE 2022 indicou 4.601 pessoas. A cidade pacata, tranquila, charmosa, pouco emprego oferece, sendo a maior indústria, o curtume, o qual empregava mais de 1000 funcionários. Certamente, um em cada família, lá tinha seu emprego. Desde a quarta-feira da inundação, todos estão sem trabalho, sem água, sem energia e sem comunicação. Neste momento, os órgãos federais, estaduais e municipais, com destaque ao exército, a defesa civil, corpo de bombeiros e principalmente a solidariedade da população mantém viva a esperança de reconstrução. Se a população já estava diminuindo, tende a se acelerar em 2023 com as mortes, desaparecidos e falta de opção, especialmente aos jovens.

Aos governantes e a toda sociedade, cabe muita responsabilidade com as gerações futuras. Os eventos devem se intensificar e as catástrofes ambientais serão frequentes. A mitigação e adaptação ao novo cenário, requer estratégia de planejamento, incluindo-se a vertente ambiental. O planejamento urbano e regional deve ser observado com o zelo e urgência que o tema requer.

Ao rio que nos deu um nó na garganta, engoliu até o cemitério da cidade, rogo que liberte as almas de nossos entes queridos. Para uma região onde o turismo religioso estava se desenhando, ficará esta grande lição para a história “se dizem violentas as águas do rio que tudo arrastam, mas não se dizem violentas as margens que o oprimem”. Devemos planejar melhor nossas cidades.

Para os católicos, e de modo geral, na população, há a crença de que São Pedro controla a água despejada na Terra, mas é sempre bom destacar, cada vez mais, a importância de praticarmos os ensinamentos de São Francisco de Assis, cuidador/protetor do meio ambiente. A construção do Cristo Protetor em Encantado e a perspectiva do Grande Rosário em Muçum podem simbolizar a fé do povo desta região, mas também são prenúncios de que a natureza está dando seus recados e o ser humano tem obrigação de observá-los. Que as imagens sacras preservadas e as casas de Deus possam acolher o sofrimento e dar a coragem de seguir em frente na reconstrução das vidas e desta cidade.

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