O que é Poder?

O povo é a fonte e a origem de todo poder político


Cícero Josinaldo.
A palavra poder teve o seu sentido político esvaziado desde quando adquirimos a tendência de equacioná-la aos fenômenos do domínio, da força ou da violência. Essa tendência niveladora, na interpretação de Hannah Arendt (1906-1975), também foi posta em curso por nossa tradição do pensamento político desde quando, na antiguidade, as formas de governos foram definidas em termos de domínio do homem sobre o homem através da violência.

Entretanto, somente séculos mais tarde a vocação tradicional de equiparar o fenômeno político do poder ao fenômeno anti-político da violência seria expressamente assumida pelo poder absoluto das monarquias europeias, e cuidadosamente elaborada por teóricos como Jean Bodin (França) e Thomas Hobbes (Inglaterra). A transmissão dessa equiparação, de tão bem acolhida pelos teóricos políticos dos séculos XIX e XX, foi consensualmente aceita pela esquerda e pela direita, que compreenderam o poder como uma das formas mais flagrantes de manifestação da violência. Essa compreensão do poder político teve duas implicações fundamentais que merecem ser mencionadas: 1) a transposição das relações de poder do vocabulário político para o binômio domínio/submissão – cujo denominador seria a ameaça de violência – e 2) a consequente convicção de que sendo a violência uma das modalidades mais flagrantes de manifestação do poder, o que realmente importa em questão de política é saber quem domina quem.

Contra o aparentemente inquestionável equacionamento do poder político à violência, Hannah Arendt opõe “uma outra tradição e um outro vocabulário não menos velhos e veneráveis” que aquele mesmo equacionamento cobriu com sedimentos: as experiências políticas em que o poder, na medida em que remete às determinações essenciais do fenômeno político em sua origem, era uma alternativa à violência enquanto modo de estabelecer relações. Das experiências políticas esquecidas no passado (a pólis isonômica e a civitas romana), Arendt resgata um conceito de poder e de lei que não tem qualquer semelhança com a relação mando/obediência que a tradição nos legou. Para tanto, a filósofa teve de retroceder a um período histórico-político anterior às formas de governo já constituídas, a fim de encontrar o espaço e o modo originários de onde brotam a política e o poder, fundamentalmente distintos das manifestações de violência.

Nas experiências em que Hannah Arendt pretende rememorar o nascimento do poder ou a experiência humana de agir em conjunto, ele se articula ao fenômeno político em suas determinações fundamentais. Ao contrário da força que é um atributo, uma qualidade natural e uma posse de todo homem tomado isoladamente, o poder é condicionado pela conjugação ou pela soma de ações individuais e se dissolve juntamente com a dispersão dos que por consentimento se uniram entre si para o propósito de agirem conjuntamente. Por essa razão, como assinala Arendt, o poder só pode pertencer a um grupo de indivíduos e somente até o momento em que tais indivíduos permanecerem assim associados. Dado o estado latente ou a existência apenas potencial do poder, ele só existe na medida em que é efetivado, não podendo ser armazenado e precisamente mensurado como ocorre aos implementos de violência. A ação conjugada a que chamamos poder só passa a existir quando não se dissocia do discurso persuasivo e da união livre e consensual, que surge desse modo humano de estabelecer relações e realizar empreendimentos em conjunto.

A frase “Onde quer que vás, serás uma pólis” se tornou a senha da colonização e da fundação de novos corpos políticos para os gregos, porque exprimia a convicção de que o discurso, a ação e sua respectiva estrutura de poder, a política, criam o relacionamento com que o homem pode se estabelecer do modo mais adequado em qualquer lugar que ele habite. Com efeito, uma vez que a estabilidade da esfera pública depende da permanência da estrutura de poder, a fundação de uma comunidade política é efetivada sempre que ação conjugada de um grupo de indivíduos que se une por consentimento permaneça intacta sob efeito de forças estabilizadoras – cuja tarefa é edificar uma estrutura segura e estável para a ação conjugada.

Por isso, em um ensaio intitulado O que é violência, a filósofa diz que “é o apoio do povo que empresta poder às instituições de um país, e este apoio não é mais que a continuação do consentimento que, de início, deu origem às leis. No governo representativo, o povo supostamente controla os que governam. Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; petrificam e decaem quando o poder vivo do povo cessa de lhes sustentar”.

Em outras palavras: o povo é a fonte e a origem de todo poder político. Talvez nada ilustre melhor esse fato já bastante desacreditado em nossa democracia eminentemente representativa, do que os movimentos sociais que culminaram no impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo.

Cícero Josinaldo é doutor em Filosofia



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