Desafios e controvérsias na demarcação de terras indígenas: o papel do marco temporal

É importante considerar os direitos constitucionais dos povos originários, bem como buscar soluções que conciliem os interesses de todas as partes envolvidas

Paulo Afonso Tavares, articulista. (Foto: Reprodução)


Na noite de terça-feira (30), a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei 490/07, que trata do marco temporal na demarcação de terras indígenas, com 283 votos a favor e 155 contra. Essa aprovação representa uma grande derrota para o governo do presidente Lula, que é contra o marco temporal. Agora, o governo tem duas opções: barrar a aprovação no Senado Federal ou judicializar a decisão.

É importante abordar esse assunto de forma imparcial para analisar a complexidade do tema em questão. Primeiramente, é necessário compreender o que é o marco temporal na demarcação de terras indígenas antes de criticar ou defendê-lo, pois muitas pessoas apoiam ou criticam sem entender plenamente sua conjuntura.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, realizada no Congresso Nacional do Brasil para elaborar uma Constituição democrática após 21 anos de ditadura militar, um dos temas mais discutidos e controversos foi a questão dos povos indígenas, conhecidos como povos originários atualmente.

Antes da Constituição de 1988, a incorporação dos indígenas à cultura brasileira era uma prática criticada, pois resultava na aniquilação da cultura indígena. No entanto, com a promulgação da Constituição, houve uma mudança drástica nessa realidade. A Constituição passou a garantir e reconhecer as tradições e culturas dos povos originários, assim como seus direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas por eles.

As terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários são consideradas bens da União Federal. A Constituição assegura a posse e o uso dessas terras a eles. O artigo 231 da Constituição Federal de 1988 estabelece: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Portanto, eles têm um direito constitucional a essas terras.

No entanto, surgem conflitos de interesse em relação às terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, o que gera diversas discussões. A demarcação dessas terras é necessária para determinar quais terras os povos originários têm direito. Os processos de demarcação são frequentemente alvo de debates intermináveis para determinar se as terras podem ser consideradas tradicionalmente indígenas ou não.

Esses debates aparentemente intermináveis ocorrem devido aos interesses envolvidos nesse tema. Quando uma terra é reconhecida como tradicionalmente indígena, aqueles que a ocupavam, mesmo com um título de propriedade, perdem o direito sobre ela, sem receber qualquer indenização pela perda. O parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição afirma: "São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé".

Em um processo de demarcação de terras tradicionalmente indígenas, quando uma pessoa está ocupando essa área, de acordo com a Constituição Federal de 1988, essa ocupação é considerada nula e não gera direito a indenização por parte da União.

Isso resulta em um forte conflito de interesses entre os ocupantes das áreas, que frequentemente são agricultores, e os povos originários e seus defensores.

Nesse contexto, entra em jogo o marco temporal, que é um critério utilizado para determinar se uma terra pode ser considerada tradicionalmente indígena. Existem duas teorias para classificar se uma terra pode ou não ser considerada tradicionalmente indígena: a Teoria do Indigenato e a Teoria do Fato Indígena (marco temporal).

Na Teoria do Indigenato, os direitos dos povos originários são considerados direitos originários, inerentes à condição indígena, existindo antes mesmo da formação do Estado Brasileiro. O objetivo dessa teoria é reconhecer e garantir as terras aos povos originários.

Por outro lado, a Teoria do Fato Indígena, ou marco temporal, busca estabelecer um momento específico para analisar se uma terra está ou não ocupada pelos povos originários. Essa teoria foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Petição 3.388, em março de 2009, que decidiu pela demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e determinou que os produtores rurais que a ocupavam deveriam deixá-la.

O marco temporal utilizado pelo STF para considerar se a terra Raposa Serra do Sol é tradicionalmente indígena foi a data de 5 de outubro de 1988, a promulgação da Constituição Federal. Assim, o Supremo decidiu que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, para fins de proteção constitucional estabelecida no artigo 231, são aquelas que eles ocupam a partir de 5 de outubro de 1988. Não é possível retroceder além da formação do Estado Brasileiro para determinar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a fim de evitar insegurança jurídica. Portanto, nesse momento, o STF adotou a Teoria do Fato Indígena, que estabelece um marco temporal.

No caso da terra Raposa Serra do Sol, segundo o STF, são consideradas terras dos povos originários aquelas que eles ocupam a partir da data de promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, bem como as terras das quais os indígenas foram expulsos, mesmo que não estejam atualmente ocupadas por eles. Os indígenas estão empenhados em reaver suas terras e sempre mantiveram presença na região.

No entanto, surge um problema jurídico: embora exista um precedente no STF, ele não é vinculante, ou seja, não tem efeito obrigatório para outros casos de demarcação de terras indígenas. Essa questão foi discutida nos embargos de declaração durante o julgamento da Petição 3.388 no STF.

Devido a essa falta de vinculação, o tema foi levado a uma nova discussão no STF por meio do Recurso Extraordinário 1.017.365 (Tema Repercussão Geral nº 1031). Trata-se de um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e os indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada - e já identificada - como parte de seu território tradicional.

A terra em disputa faz parte do território Ibirama-Laklanõ, que foi reduzido ao longo do século XX. Além dos Xokleng, também vivem na região indígenas dos povos Guarani e Kaingang. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada por estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte de seu território tradicional.

Essa situação cria um impasse institucional, pois o julgamento do marco temporal no STF estava agendado para 7 de junho, mas houve uma manobra da bancada ruralista da Câmara dos Deputados, liderada pelo deputado Arthur Lira, que colocou o Projeto de Lei 490/2007 sobre o marco temporal como urgência para votação na Câmara, sem discussão prévia com os líderes partidários. O deputado Arthur Lira justificou essa medida como uma forma de impedir a intervenção do STF nessa questão.

Agora, o Governo Federal, que é contra o Projeto de Lei aprovado na Câmara dos Deputados, espera contar com o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para que o projeto não seja aprovado rapidamente, permitindo que o STF julgue a questão do marco temporal.

Uma sugestão seria o Congresso Federal aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para modificar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal e indenizar os ocupantes das terras demarcadas para os povos originários.

Esse tema da demarcação de terras dos povos originários é interessante para ser abordado em meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na especialização em Direito Constitucional na Gran Faculdade ou, quem sabe, futuramente, na graduação em Direito.

A demarcação de terras indígenas é um assunto complexo, envolvendo diferentes perspectivas e interesses. É fundamental analisar a questão de forma imparcial, considerando os direitos dos povos originários, a proteção de suas culturas e tradições, bem como as preocupações legítimas dos ocupantes de terras demarcadas.

A discussão sobre o marco temporal na demarcação de terras indígenas levanta questões importantes sobre como definir e garantir os direitos territoriais dos povos originários. As teorias do Indigenato e do Fato Indígena (marco temporal) apresentam abordagens diferentes nesse sentido.

É relevante mencionar que a decisão do STF sobre a terra Raposa Serra do Sol estabeleceu um marco temporal específico, mas não é aplicável a todos os casos de demarcação de terras indígenas. Isso levanta a necessidade de uma discussão mais ampla e uma definição clara sobre como o marco temporal deve ser aplicado de forma consistente.

A recente aprovação do Projeto de Lei 490/2007 pela Câmara dos Deputados intensifica o debate sobre o marco temporal e suas implicações. O posicionamento do governo e a possibilidade de judicialização indicam que o tema continuará sendo objeto de controvérsias e disputas políticas e jurídicas.

Em conclusão, a demarcação de terras indígenas é um tema relevante e complexo, que exige uma análise imparcial e aprofundada. É importante considerar os direitos constitucionais dos povos originários, bem como buscar soluções que conciliem os interesses de todas as partes envolvidas.

Paulo Afonso Tavares, é professor e jornalista. Cursa o doutorado em História na Universidade Federal de Goiás e o mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial na PUC GOIÁS.

Comentários

Anônimo disse…
Acho um disaforo esse povo ficar mechendo com os indios.