Cuco, Cuco, Cuco... Ele chega quando a casa menos espera
Um conto — ou o canto — de uma estrutura perversa. Uma análise psicanalítica do Cuculus canorus — o cuco que abandona sua cria ao outro e, nesse gesto, revela na natureza o espelho inquietante das estruturas que parasitam a alma humana.
ARTIGO | Comendador Marcelo Lopes, psicanalista, empresário, maçom e rotariano, escritor com vários artigos e livros publicados
Sabe aquele relógio de parede que carrega um mistério quase infantil? O relógio de cuco, nascido na Alemanha do século XVIII, lá na Floresta Negra, terra úmida de pinheiros e artesãos obstinados.
De hora em hora, uma janelinha se abre, e um pequeno pássaro mecânico surge, anunciando o tempo com seu cuco repetido — uma vez para cada hora.
A cena é inocente. A engrenagem é simples. Mas o símbolo… ah, o símbolo sempre esconde uma natureza.
O relógio de cuco é encantador porque imita um pássaro que, na vida real, guarda um dos comportamentos mais estranhos — e mais perturbadores — da natureza.
O Nascimento do Intruso
O cuco verdadeiro não constrói ninho. Não aquece ovos. Não defende filhotes.
Ele faz algo mais sutil — e mais brutal: coloca seu ovo no ninho de outro pássaro, sempre menor, sempre mais frágil.
A estratégia é fria. A escolha é calculada. E assim como na psicanálise, o encontro entre o forte e o frágil nunca é inocente.
A mãe-pássaro, enganada, choca o ovo estranho como se fosse seu. O filhote de cuco nasce maior, mais forte, mais voraz. E então realiza o gesto que define sua estrutura: empurra os outros filhotes para fora do ninho. Imagina a cena: os irmãos legítimos sendo arremessados ninho abaixo, um a um, pelas costas de um intruso.
Quando a mãe retorna, encontra apenas o usurpador — um filhote enorme, com a boca tão escancarada que parece querer engolir o próprio mundo. O contraste é tão absurdo que muitas se assustam com o tamanho do “bebê”.
Ainda assim, elas o alimentam. Porque a natureza às vezes nos obriga a amar aquilo que não veio de nós — mas que exige de nós tudo que temos.
A Estrutura do Cuco
Esse comportamento sempre serviu à biologia: o cuco não é maldoso — ele é apenas fiel à sua estrutura.
É sua forma de existir no ecossistema. Ele controla populações, movimenta predadores, reorganiza fluxos da floresta. PSem ele, a cadeia se desajusta.
Na natureza, não é uma maldição. É função. É papel. É destino biológico. Mas quando essa lógica atravessa a barreira do simbólico e aparece nas relações humanas… o enredo muda de figura.
O Cuco Humano
Algumas pessoas nascem psiquicamente como o cuco nasce biologicamente.
Não constroem seus próprios ninhos afetivos. Não criam vínculos verdadeiros. Não sustentam reciprocidade. Aparecem sempre onde há alguém menor, mais frágil, mais disposto a cuidar.
E, como o cuco, se instalam. Ocupam espaços emotivos que não plantaram. Se alimentam da energia emocional dos outros. Crescem à custa do zelo alheio.
Enquanto crescem, empurram para fora: teus projetos, teus laços legítimos, teus desejos, tua identidade mais frágil, teus próprios “filhotes internos”.
Até que, quando você percebe, tudo o que restou no teu ninho é aquilo que nunca foi teu — mas que você se acostumou a alimentar.
A Mãe Enganada
Assim como no mundo das aves, o humano cuidador — o “pássaro menor” — muitas vezes não entende o que está alimentando. Confunde intensidade com afeto, demanda com amor, peso com presença.
E a grande boca escancarada do cuco psíquico pede, exige, consume, absorve deixando você cada vez menor dentro da própria vida que deveria ser tua.
O Relógio que Avisa
Os alemães não escolheram o cuco por acaso. Eles sabiam o que estavam fazendo quando colocaram aquele pássaro para sair da portinhola de hora em hora — como quem esculpe na madeira um aviso herdado das sombras da Floresta Negra:
“Fique alerta. O usurpador sempre aparece no minuto em que o guardião relaxa.”
O cuco que salta do relógio não é apenas um enfeite antigo. É um sentinela doméstico, um vigia de madeira lembrando que o intruso vive do instante em que o dono adormece dentro do próprio lar.
A cada badalada, o mecanismo repete uma liturgia silenciosa: o tempo revela, o tempo denuncia, o tempo chama. E aquilo que parece um brinquedo inocente é, na verdade, um lembrete delicado e dramático de que onde a atenção falha, alguém ocupa.
O “cuco” ecoa com suavidade, mas firme: é quase uma rima marcada no ar, um verso que sobe e desce, lembrando que até as casas mais pacíficas precisam de olhos que vigiam.
O Desfecho
E você, que já chocou ovos que não eram seus, que já alimentou bocas que nunca devolveram afeto, que já viu teus próprios filhotes simbólicos serem empurrados para fora, precisa compreender algo profundo:
O cuco não sabe ser outra coisa.
Mas você sabe.
Sua tarefa não é odiar o cuco — é recuperar o seu ninho. É fortalecer o galho, refazer as bordas, reivindicar o espaço que sempre foi teu.
Porque no fim, o cuco voa. Sempre voa. O que permanece é o ninho que você decide reconstruir com aquilo que finalmente te pertence.
ARTIGO | Comendador Marcelo Lopes, psicanalista, empresário, maçom e rotariano, escritor com vários artigos e livros publicados
Sabe aquele relógio de parede que carrega um mistério quase infantil? O relógio de cuco, nascido na Alemanha do século XVIII, lá na Floresta Negra, terra úmida de pinheiros e artesãos obstinados.
De hora em hora, uma janelinha se abre, e um pequeno pássaro mecânico surge, anunciando o tempo com seu cuco repetido — uma vez para cada hora.
A cena é inocente. A engrenagem é simples. Mas o símbolo… ah, o símbolo sempre esconde uma natureza.
O relógio de cuco é encantador porque imita um pássaro que, na vida real, guarda um dos comportamentos mais estranhos — e mais perturbadores — da natureza.
O Nascimento do Intruso
O cuco verdadeiro não constrói ninho. Não aquece ovos. Não defende filhotes.
Ele faz algo mais sutil — e mais brutal: coloca seu ovo no ninho de outro pássaro, sempre menor, sempre mais frágil.
A estratégia é fria. A escolha é calculada. E assim como na psicanálise, o encontro entre o forte e o frágil nunca é inocente.
A mãe-pássaro, enganada, choca o ovo estranho como se fosse seu. O filhote de cuco nasce maior, mais forte, mais voraz. E então realiza o gesto que define sua estrutura: empurra os outros filhotes para fora do ninho. Imagina a cena: os irmãos legítimos sendo arremessados ninho abaixo, um a um, pelas costas de um intruso.
Quando a mãe retorna, encontra apenas o usurpador — um filhote enorme, com a boca tão escancarada que parece querer engolir o próprio mundo. O contraste é tão absurdo que muitas se assustam com o tamanho do “bebê”.
Ainda assim, elas o alimentam. Porque a natureza às vezes nos obriga a amar aquilo que não veio de nós — mas que exige de nós tudo que temos.
A Estrutura do Cuco
Esse comportamento sempre serviu à biologia: o cuco não é maldoso — ele é apenas fiel à sua estrutura.
É sua forma de existir no ecossistema. Ele controla populações, movimenta predadores, reorganiza fluxos da floresta. PSem ele, a cadeia se desajusta.
Na natureza, não é uma maldição. É função. É papel. É destino biológico. Mas quando essa lógica atravessa a barreira do simbólico e aparece nas relações humanas… o enredo muda de figura.
O Cuco Humano
Algumas pessoas nascem psiquicamente como o cuco nasce biologicamente.
Não constroem seus próprios ninhos afetivos. Não criam vínculos verdadeiros. Não sustentam reciprocidade. Aparecem sempre onde há alguém menor, mais frágil, mais disposto a cuidar.
E, como o cuco, se instalam. Ocupam espaços emotivos que não plantaram. Se alimentam da energia emocional dos outros. Crescem à custa do zelo alheio.
Enquanto crescem, empurram para fora: teus projetos, teus laços legítimos, teus desejos, tua identidade mais frágil, teus próprios “filhotes internos”.
Até que, quando você percebe, tudo o que restou no teu ninho é aquilo que nunca foi teu — mas que você se acostumou a alimentar.
A Mãe Enganada
Assim como no mundo das aves, o humano cuidador — o “pássaro menor” — muitas vezes não entende o que está alimentando. Confunde intensidade com afeto, demanda com amor, peso com presença.
E a grande boca escancarada do cuco psíquico pede, exige, consume, absorve deixando você cada vez menor dentro da própria vida que deveria ser tua.
O Relógio que Avisa
Os alemães não escolheram o cuco por acaso. Eles sabiam o que estavam fazendo quando colocaram aquele pássaro para sair da portinhola de hora em hora — como quem esculpe na madeira um aviso herdado das sombras da Floresta Negra:
“Fique alerta. O usurpador sempre aparece no minuto em que o guardião relaxa.”
O cuco que salta do relógio não é apenas um enfeite antigo. É um sentinela doméstico, um vigia de madeira lembrando que o intruso vive do instante em que o dono adormece dentro do próprio lar.
A cada badalada, o mecanismo repete uma liturgia silenciosa: o tempo revela, o tempo denuncia, o tempo chama. E aquilo que parece um brinquedo inocente é, na verdade, um lembrete delicado e dramático de que onde a atenção falha, alguém ocupa.
O “cuco” ecoa com suavidade, mas firme: é quase uma rima marcada no ar, um verso que sobe e desce, lembrando que até as casas mais pacíficas precisam de olhos que vigiam.
O Desfecho
E você, que já chocou ovos que não eram seus, que já alimentou bocas que nunca devolveram afeto, que já viu teus próprios filhotes simbólicos serem empurrados para fora, precisa compreender algo profundo:
O cuco não sabe ser outra coisa.
Mas você sabe.
Sua tarefa não é odiar o cuco — é recuperar o seu ninho. É fortalecer o galho, refazer as bordas, reivindicar o espaço que sempre foi teu.
Porque no fim, o cuco voa. Sempre voa. O que permanece é o ninho que você decide reconstruir com aquilo que finalmente te pertence.
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NOTA: Artigos publicados neste espaço trazem ideias e opiniões de quem os assinam e não do titular deste blog.
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