Quando as luzes se apagam – Uma crônica sobre caráter, moral e vigilância

No silêncio onde o caráter mora. Na escuridão onde a consciência é testada. Porque ali, quando ninguém vê, é onde nasce o verdadeiro eu.

Comendador Marcelo Lopes, articulista. (Foto: Divulgação)

ARTIGO | Comendador Marcelo Lopes é psicanalista e empresário

Na rodovia, eu viajo. Mas quem realmente se move é o meu medo. Não do acidente. Do radar. Olho mais para o velocímetro do que para o horizonte. Um aparelho frio define se sou cidadão de bem ou infrator. E adiante, um guarda se esconde atrás da moita como se fosse um caçador de pecados sobre rodas, luneta em punho, esperando o deslize.

Chego à cidade e o cenário se intensifica. Câmeras por toda parte. Uma verifica se respeitei a faixa de pedestres. Outra confere se avancei no amarelo. Sensores para velocidade, ruído, emissão de gases, tempo de estacionamento. Inteligências artificiais identificam minha face, minha pressa, minha distração.

O criminoso carrega uma tornozeleira. Mas e eu? E você? Quantas tornozeleiras invisíveis nos cercam todos os dias? Quantas vezes nossos freios são mais medo do que moral? Quantas vezes só fazemos o certo porque tem uma câmera na esquina?

E então a pergunta que fere vem sem pedir licença: Qual seria sua velocidade sem radares? Você ainda respeitaria a faixa de pedestre? Ou usaria o retrovisor como desculpa para fingir que não viu? Quem é você quando, do carro, arremessa o lixo nas ruas escuras? Ou quando, embriagado, segue pelo GPS, desce ruas proibidas, vê um cone, se assusta, e só então percebe as viaturas ao redor

Ficamos indignados com os criminosos monitorados por satélites e tornozeleiras eletrônicas. Mas a verdade é que, sem vigilância, nos tornamos o criminoso que apontamos com o dedo. Fazemos o bem ou apenas obedecemos?

Kant já avisava, lá no século XVIII: “Age de tal forma que a tua ação possa se tornar lei universal.” Ou seja: se todo mundo fizesse o que você faz quando ninguém está olhando, o mundo ainda seria habitável?

E Michel Foucault, esse maestro da desconfiança, nos alertava sobre a armadilha social do “olho que tudo vê”: Não precisa mais de grades ou capatazes. Basta que o sujeito acredite estar sendo observado — e ele se comportará. A autoridade não precisa nem aparecer. A suspeita da sua presença já molda o corpo, a fala, o desejo.

E então não vivemos mais com liberdade, mas com vigilância internalizada. Você já sentiu isso Esse incômodo de estar sendo observado o tempo todo? Esse filtro moral que se ativa no elevador, na fila do banco, ao responder um e-mail? Essa sensação de que há sempre um “olho que tudo vê”, invisível, mas presente? Pois é. Essa é a prisão sem grades. A cela sem tranca. A moral de fachada.

Freud, com sua lupa da alma, diria que essa moral imposta, não escolhida, adoece o sujeito. Ela não transforma. Apenas reprime. E o que é reprimido, volta. Volta como angústia, como raiva, como corrupção embaixo do tapete. Zygmunt Bauman, nosso profeta líquido, completaria: “Vivemos uma era onde a ética escorre pelos dedos, e a vergonha é só quando viraliza.”

A cidade bem monitorada sente-se segura. Mas será que é realmente civilizada? Talvez estejamos vivendo não numa sociedade ética, mas numa sociedade vigiada. Não educada, mas adestrada. Cidadãos que se comportam — não por virtude, mas por receio. Somos adultos com moral de criança: só nos controlamos porque o pai está olhando. Mas e quando o pai sai? E quando o radar falha? E quando a câmera quebra? Quem é você quando ninguém está olhando? Quem sou eu? A resposta não se mede em quilômetros por hora. Nem em boletos pagos. A resposta está na sombra.

No silêncio onde o caráter mora. Na escuridão onde a consciência é testada. Porque ali, quando ninguém vê, é onde nasce o verdadeiro eu.

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Nota: Artigos publicados neste espaço trazem ideias e opiniões de quem os assinam e não do titular deste blog.

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