O grito que o divã não aguenta mais

Um manifesto sobre a clínica que precisa olhar o corpo sem abandonar a alma

Ilustração com imagem do Canva e Marcelo Lopes (Foto: Divulgação)


ARTIGO | Comendador Marcelo Lopes é psicanalista

Escutem. Escutem antes que o silêncio da sala vire pacto.

Antes que a repetição elegante das teorias sirva apenas para proteger o analista do desconforto de admitir que algo está sendo mal escutado.

neuroses, sim. Há sintomas que retornam como cartas não respondidas. Há histórias que se repetem porque o sujeito insiste em não se ouvir. Mas há também tireoides em colapso, regendo o humor como um maestro cansado, acelerando o coração, roubando o sono, fabricando angústias que nenhum significante explica sozinho.

testosteronas no chão, levando junto a energia, o desejo, a confiança mínima de existir no mundo. E vocês chamam isso de resistência. Há estrogênios oscilando, transformando o corpo em território instável, onde a ansiedade brota sem pedir licença e a tristeza chega sem endereço simbólico.

cortisol alto, mantendo o sujeito em estado permanente de alerta, como se a vida fosse um incêndio contínuo — e vocês seguem pedindo associação livre a alguém que está apenas tentando sobreviver.

E ainda assim, vocês interpretam. Interpretam tudo. Interpretam a falta de libido. Interpretam o pânico súbito. Interpretam o choro inexplicável. Enquanto o corpo grita e ninguém pergunta por ele.

Há pessoas que passam anos em terapia, anos sentadas no mesmo lugar, falando as mesmas frases, saindo com a mesma dor — não porque não haja inconsciente, mas porque ninguém ousou olhar o chão biológico onde a palavra tentava se apoiar.

Sessões em que o divã range. Não de emoção — de exaustão. Sessões em que até o couro parece dizer: “Isso não é elaboração, é negligência. Não é profundidade ignorar o corpo. É cegueira bem vestida.

A clínica não é um altar teórico. É um canteiro vivo, onde palavra, carne e história precisam coexistir sem hierarquia arrogante.

Nem tudo se muda. Algumas coisas se entendem. Outras se aceitam. E muitas se adaptam, porque fazem parte da estrutura e não do erro.

O sujeito não vem para ser salvo da própria condição. Vem para aprender a habitá-la com menos culpa e mais lucidez.

Há dores que não desaparecem — se organizam. Há faltas que não se fecham — se tornam morada.

E dizer isso é mais honesto do que prometer cura total em sessões intermináveis que não respeitam os limites do corpo.

O inconsciente fala. Mas os hormônios escrevem com força. Ignorar um deles é dividir o sujeito ao meio e chamar isso de método.

Escutem melhor. Olhem mais longe. Cuidem do terreno antes de exigir flores. Porque quando a clínica falha, não é a teoria que sangra. É o sujeito. E isso — isso o divã já não suporta calado.

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NOTA: Artigos publicados neste espaço trazem ideias e opiniões de quem os assinam e não do titular deste blog.

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